Esta é uma peça de teatro infantil que eu escrevi há muito tempo atrás, para os meus três filhos. A eles, juntou-se o nosso vizinho, Luís Silva. Inês era bebé. Lembram-se da peça, meninos? Lembram-se dos ensaios? Este blog é-vos dedicado.

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Domingo, 6 de Outubro de 2013

O sonho reencontrado

O sonho reencontrado

A personagem, de meia-idade, está sentada a uma mesa de cabeça baixa e as mãos esticadas em cima da mesma, com a palma da mão voltada para baixo. À sua frente, uma revista aberta, parece abandonada. A luz incide sobre ele, no início, muito fraca e vai aumentando, pouco a pouco, até parecer acordar o homem de um sonho. Levanta-se lentamente e dirige-se até à boca de cena.
Cena I

- Quem disse que não poderia realizar o meu sonho? Sim, quem disse? E se vos disser que a realização dos sonhos é possível? Eu realizei o meu. Não foi fácil. Ah, não foi, não! Lutei contra ventos e marés… mas consegui. Às vezes, não são os sonhos que são irrealizáveis, somos nós que desistimos deles, Muitas vezes, porque desconhecemos os passos que devemos dar, outras porque desistimos mesmo antes de tentar. Passei pelas duas situações. Se passei! Tive momentos de medo, momentos de ânimo, desânimo e desespero. Cheguei mesmo a pôr o meu sonho de lado. Mas não consegui. Algo foi mais forte mais forte do que eu, algo falou mais alto...Sabem como aquelas vozes que nós, homens, e agora também vocês, mulheres, se habituaram a ouvir na tropa. Não sei se sabem do que estou a falar… aquelas vozes de comando que nos fazem andar para a frente, mesmo quando temos vontade de recuar. Só que esta voz veio de dentro. Mas falou de tal modo alto e de forma tão razoável que me pôs a mexer. Comecei timidamente, mas, à medida que o tempo passava e descobria que o meu sonho tinha pernas para andar, mais entusiasmado ficava, e mais vontade tinha de andar. (Volta-se para o público e abre os braços deixando-os cair ao longo do corpo). Foi tudo tão extraordinário! Querem saber? Claro que querem. É para isso que aqui estão. Bem, por onde hei-de começar? Ah, sim. Que raio de pergunta. Que tal pelo início? Afinal, é por aí que começam todas as histórias. Bem, pronto, muitas das histórias. A minha, pelo menos, vai começar por aí. Nunca consegui tirar boas notas na escola. No entanto, não era burro. Simplesmente distraído. Sim, era verdade. Era dotado de uma distracção tal, que as disciplinas que requeriam mais concentração e raciocínio eram as mais prejudicadas. Nunca entendi o que se passou. O que parecia tão fácil para os meus companheiros, para mim era pior do que escalar uma montanha rochosa onde não existe qualquer orifício que ajude na subida. O que eu compreendia, parecia ser o inverso daquilo que os outros compreendiam. Estávamos na mesma sala de aula, todos ouvíamos a mesma explicação, no entanto, eu parecia que tinha um explicador particular. Quando trocava impressões sobre a matéria, no recreio com os colegas, abriam muito os olhos duvidando se teríamos ouvido a mesma explicação, tal era a diferença! Desisti cedo da disciplina. (Faz uma pausa e encara os espectadores. Ri-se, embaraçado. Leva a mão à cara, tapando a boca e parte do nariz). Peço desculpa. Já devem estar perdidos. Sim, não mintam. Afinal, não sabem exactamente a que disciplina me refiro. Ora bem, se não adivinharam já, vou dizer-lhes que se trata da Matemática. Não sei se algum de vós passou pelo mesmo calvário que eu. Passaram? Não? Sim? (olhando para o lado direito, frente e esquerdo) Bem, não interessa. Onde é que eu ia? Ah, bem, já sei… AA disciplina que se assemelhava, pelo menos para mim, ao Evereste na versão disciplinar, era a Matemática. Mas nem sempre fui mau aluno a esta disciplina. O caso é bem mais complicado. Na escola primária conseguia fazer as contas com alguma dificuldade, uma vez que me esquecia sempre dos que iam de trás. Vocês abem, falo daquelas contas simples de três mais sete igual a dez e vai um… se não me esquecesse sempre dele. Acho que esta constante distracção que originava as contas erradas, acabou por me impacientar e colocar na minha cabeça que jamais compreenderia aquela disciplina. A insegurança era de tal forma grande que acabei mesmo por ganhar uma certa aversão à disciplina. Como se ela tivesse alguma culpa da minha distracção! Mas é assim a vida! Que vamos fazer a isso? A vida é assim. Pelo menos, a minha vida foi assim. (ri-se) O que me valia eram as outras disciplinas que compensavam aquela. E eu era boa às outras. Se não fossem elas, a minha vida escolar ter-se-ia tornado um inferno! Língua Portuguesa, Geografia, História, Ciências… gostava imenso delas! No segundo ciclo, as minhas notas mudaram. Refiro-me à Matemática claro está. As notas tornaram-se melhores e tudo parecia encaminhado para que fizesse as pazes com ela. Foi um período excepcional da minha vida. Adorei estudar! Tirei boas notas a todas as disciplinas. Acabei por dispensar no segundo ano do ciclo. Para os que não sabem, equivale ao actual sexto ano. Ainda recordo esse tempo com saudade. Acho que todos nós conhecemos um período escolar mais ou menos bom ou mesmo extraordinário nas nossas vidas, não é?(olha o público como se esperasse uma reacção dele. Poderá eventualmente surgir o que levará à improvisação. Mas só durante um momento para depois de desligar e continuar o seu monólogo.) O meu foi esse. Depois, nos três anos seguintes, os anos foram um autêntico suplício. Mudei para uma escola particular e os colegas nada ou pouco tinham a ver comigo. Para começar, eram muito mais velhos do que eu. Alguns atingiam uma altura que eu jamais conseguiria igualar. Mas não eram simpáticos, Sofri, com alguns anos de antecedência daquilo que hoje se chama bullying escolar. Nada tinha a ver com eles. Por tal, era objecto de gozo. As minhas notas ressentiram-se. Desta vez, todas as disciplinas se ressentiram. Quando o ambiente melhorava eu lá tinha ânimo para pegar nos livros, quando piorava, queria era esquecer aquele lugar que tanto me fazia sofrer. A minha sorte, mas não total, era ser externo. Mas isso não aliviava o sofrimento. Tanto tinha boas como más notas. Nunca me destaquei pelas notas. O aproveitamento era fraco. Então, a Matemática, se já sabia pouco, passei a saber quase nada. Parecia que não entrava na cabeça. Cheguei a atirar 0,5 na escala de 0 a 100. Se não foi a mais baixa, foi uma das mais baixas da minha vida. Cheguei mesmo a chumbar no nono ano, precisamente aquele que mais gostei. Ainda não sei bem porquê. Chumbei com quatro a História, Inglês e não que outra disciplina. Chumbei a Matemática, Físico-Química e… Desenho. Mas este chumbo ao contrário do que pode parecer não foi um castigo. Custou-me. Oh. Se me custou! (Abana a cabeça pensativo e faz uma pausa.) Mas a turma que me esperava foi uma bênção para mim. Todos os rapazes eram da minha idade e partilhavam dos mesmos interesses que eu. Foram, em todos os aspectos, uma bênção para mim. As notas voltara a subir e até as da Matemática e consegui, após três anos de interregno, volta aos testes satisfatórios. Foi uma alegria. O meu sonho de criança encheu o meu peito. Sentia-me tentado a seguir uma carreira de ciências. Mas a minha professora de fixou-me os pés na terra. Aquelas positivas em nada me iriam ajudar nos anos que se avizinhavam. Percebi que tinha razão. Coloquei de lado o meu sonho e optei por uma carreira de letras. Acabei o secundário com boas notas. O 12º ano, levou-me a nova mudança de escola e as notas também se ressentiram. Mas consegui entrar na Universidade. Licenciei-me. Mas o meu sonho voltava incessantemente para me atormentar. Era como se algo me faltasse. A minha paixão pela astronomia, que vinha da minha infância, acompanhava-me. Comprava tudo o que se relacionasse com a disciplina. Tudo o que falasse de astros, planetas e outros mistérios, acabava sempre por me seduzir. E a informação, na altura, não era muita. Agora, é muito mais vasta. Está à distância de um clique. (Faz uma pausa e olha vivamente para o público) Não há uma publicidade qualquer com esta expressão? Acho que sim. `real. Sim, é verdadeira. Mas adiante… Onde é que eu estava? Ah, já sei. A astronomia. Um dia, estava a ar uma aula em parecia coma colega de ciências, mais concretamente de Matemática, quando me apercebi que estava a compreender toda a matéria. Tudo quanto me parecera inacessível, há muitos anos atrás, estava agora a compreender melhor ainda do que os miúdos. A minha atenção estava a ser recompensada! A mesma atenção que me faltou há muitos anos atrás. O meu entusiasmo aumentou gradualmente e procurei saber mais. Como o meu sonho continuava a perturbar-me, lembrei-me de recomeçar a estudar as disciplinas que me faltavam para completar a minha formação nas disciplinas científicas. Procurei um professor particular e inscrevi-me nos exames. (Aparte. Virando-se ligeiramente de lado e colocando a mão ao lado da boca, à laia de confidência) Haviam de ver a cara Ada senhora, já de uma certa idade, quando me viu, na inscrição e sabia que os meus filhos frequentavam a mesma escola e faziam os mesmos exames! (ri-se) Passei com boas notas. Não imaginam a minha alegria! (parou exultante) Consegui entrar na universidade para o curso que sempre me apaixonou. Acabei o curso e estou a pensar em seguir a via de investigação (foi aliás na investigação que sempre me destaquei pela positiva, está claro!) que sempre me apaixonou. (Volta-se de lado para o público e estende o braço esquerdo, indicando a mesa.) Estão a ver aquela revista em cima da mesa? Estava a ler o último artigo escrito por mim, publicado naquela revista científica. Não, não é só o resultado do meu trabalho. É o resultado do trabalho de uma equipa unida onde tenho a honra de estar integrado. (Volta-se para a frente) Ver-me no cimo de uma montanha ou no meio do deserto, vivendo só para a observação do espaço, tirando notas sobre o que vi e fazendo cálculos… Eu falei em cálculos? Só para perceberem como é fácil, agora, para mim, a Matemática. Pena não ter conseguido há mais tempo. Pena ter-me deixado levar, nem eu sei bem por quê ou por quem… mas devo tudo a mim próprio. Antes de poder culpar seja quem for, faço-o a mim próprio. Afinal, só consegui ganhar a coragem necessária ao fim destes anos todos! Mas mais vale agora que nunca. Digo-vos do fundo meu coração. Sinto-me realizado pessoal e profissionalmente. Não quer dizer que antes não estivesse realizado. Estava. Tenho consciência disso. Mas só em parte. Agora reúno todas as condições necessárias para me sentir verdadeiramente feliz. Eu falei muitas vezes deste meu caso aos alunos que embirravam, à semelhança de mim, quando tinha a sua idade, com a Matemática. Mas acho que, tal como eles, a vida profissional, para mim, estava a milhares de anos-luz! Desisti, quando deveria ter continuado a insistir. Mas há coisas que só compreendemos bem com a idade. Infelizmente, é assim! Ou deveria dizer, felizmente, porque, embora tarde, o meu sonho não morreu. Espero sinceramente que também não deixem morrer os vossos ou o vosso sonho. Falem do meu caso a todos aqueles que precisem de ser iluminados no sentido de não desistirem e, caso o tenham feito, não o deixeis morrer. Afinal, quando deixamos morrer o nosso sonho, morremos também com ele. Se o conseguiram realizar, os meus parabéns, foram mais fortes do que eu. Boa noite e bons sonhos, meus senhores e minhas senhoras.
(A luz vai diminuindo lentamente, escurecendo o palco e diluindo a figura da personagem, até esta desaparecer completamente. O pano fecha-se sobre a personagem, tapando-a.)

Fátima Nascimento
19/10/2010
publicado por fatimanascimento às 21:29
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