Domingo, 6 de Outubro de 2013
A decisão
Cena I
( As indicações cénicas poderão ser seguidas ou não. A actriz, que veste a pele da personagem, terá de mover-se de acordo com a sua forma de ser e agir. O texto não passa disso mesmo: um texto. O encenador e a actriz poderão, com total liberdade, realizar o seu trabalho! Podem e devem acrescentar, retirar, modificar peças ao cenário, enriquecendo-o!
Cenário: um janela ao fundo, iluminada, uma mesa ao meio do palco com uma cadeira atrás. Maria entra em cena queixando-se fisicamente de algumas dolências. Coloca a pasta em cima da mesa. Volta-se para o público.)
- Estou tão cansada! Não é vulgar! Não sei de onde vem! Nunca me senti assim! Nem mesmo quando estive doente! Vamos a ver (conta pelos dedos): não tenho trabalhado demasiado, não tenho preocupações no emprego, (pelo menos para já ou se os tenho, muito sinceramente, desconheço-os ou talvez não lhes dê importância para saber da sua existência. Não me interessam pura e simplesmente! A vida corre-me bem. É claro que me refiro à vida profissional. A vida pessoal resume-se à minha pessoa e não tenho conflitos comigo. Sinto-me bem com o que sou, como estou e quem sou. Portanto nada de anormal. Pelo menos, até aqui! Psicologicamente estou bem: serena e feliz tanto quanto possível. Por isso, a parte psicológica e psíquica estão equilibradas. Não quero dizer que não tenha tido vontade de matar alguém, uma ou outra vez na vida, mas isso foram acidentes de percurso e nem a raiva restou dos incidentes. Pessoas mesquinhas e más não merecem atenção, só desprezo! Por isso, não sei o que se passa! Nada me afecta. Nem mesmo o projecto que me foi oferecido, e que não deixa de ser um desafio, mas que não é nada que eu não consiga idealizar e concretizar no papel. Afinal, sou arquitecta e estou habituada a desafios desses! Depois, já passei muitas vezes por esta situação centenas de vezes nos meus quarenta e seis anos! E já provei o que tinha a provar! (intrigada) Então que raio se passa comigo? Também não pode ser solidão. A minha social, depois do trabalho, não é mais movimentada porque não quero. Ora, como não tenho saído muito, devo dizer que quase nem saio (já passei essa fase!) também não é cansaço por falta de sono! O cansaço também não se pode atribuir ao sono leve ou à insónia. Não tenho! Então o que se passa comigo? Também não estou triste porque não tenho motivos. Mais… deixa-me cá ver… Também não tenho problemas familiares que me desgastem… Decididamente não sei o que se passa comigo! Devo estar doida! Pode ser essa a explicação! Mas não, também não é por aí! Sinto-me bastante lúcida. (ri-se com descontracção) Realmente, não sei o que se passa…Deixa-me ver quais são os outros sintomas (credo já pareço um médico!) -(estremece) – detesto tudo quanto diga respeito à saúde, ou melhor, à falta dela e tudo quanto a rodeia: hospitais, centros de saúde… fazem-me muita impressão! Talvez por me fazerem perceber a fragilidade do ser humano! Ainda me lembro de, há uns anos atrás, entrar no IPO por causa de um sinal que aumentara de tamanho. Meu Deus, ainda recordo os olhos vazios, os corpos em cadeiras de espera como objectos à espera de arrumação definitiva. O único ânimo que ali senti era o dos profissionais de saúde que se assemelhavam a finos raios de luz insuficientes para iluminar convenientemente o espírito do sofrimento! Ui! Nem me quero lembrar disso! Estranho como me demorei tão pouco mas observei tanto! Fiquei impressionada, foi o que foi! Depois, a doença assusta-me. (ri-se) Acho que assusta qualquer pessoa sã! Mas nunca me preocupei muito com isso. Nem com as pequenas feridas dos joelhos me preocupava! Curava-se e estava a andar! Agora já não é bem assim! Com esta idade e com tantos avisos, já me preocupo mais, mas nunca o suficiente. Afinal, nunca respondi àquela carta que me pedia para estar em tal dia a tal hora num tal sítio para realizar uma mamografia! (Abre os lábios mostrando os dentes cerrados como que apanhada em falta) Isso já diz muito sobre mim! Bem, mas deixa-me lá ver quais são os outros sintomas para além do cansaço… dores de cabeça… é isso mesmo, dores de cabeça… que, escusado será dizer, também não sei de onde vêm! Têm-me incomodado muito! Mas nem sequer tomo paracetamol. A não ser que esteja no escritório. Aí tem de ser! São frequentes e isso, mais do que o cansaço, preocupa-me. Sobretudo quando são frequentes! Mais sintomas… (para para reflectir) Oh, é verdade! Estas desagradáveis nódoas negras que nunca mais desaparecem! Levam anos… mas acho que sempre fui assim! Mais sintomas… nada mais a acrescentar… julgo eu… deixa ver (coloca na mão no queixo enquanto reflecte) hum, também sou atreita a muitas infecções! Mas, também, com as alergias que tenho, nada de mais… Ah, é verdade os meus queridos gânglios inchados! De vez em quando, mesmo em pequena já acontecia, nada de grave… Mais… para além da obstipação intestinal que sempre me afectou, não vejo nada que possa alarmar-me. Disse alarmar-me? Acho que estou a começar a preocupar-me! (abana-se em sinal de que algo não está bem em si) Que se passa?! Nunca fui medricas e não é agora que vou sê-lo! É verdade devo ter demasiada roupa na cama, acontece-me suar muito! Tenho de tratar disso! Acordo de noite transpirada! Nada disto me parece ter algum sinal de gravidade! Mas, ainda assim, e porque a Custódia mo pediu, a ver se ligo para um centro médico e marco uma consulta! Se ela já não o fez… se calhar chego amanhã ao serviço e apresenta-me um papel com o dia, a hora e o nome da clínica mais próxima… Para além de uma grande secretária é uma excelente amiga, quase uma mãe… (desloca-se até à mesa onde está a mala. Retira uma agenda e procura um número) Deixa ver…. Já fui a esta clínica e gostei do médico que me atendeu. Como é que se chamava? José Filipe Guerreiro? Não! Barreiro? Carreiro? Não sei… a ver se a moça me ajuda. (pega no telemóvel e marca o número) Estou. Bom dia. Olhe o meu nome é Maria Fernandes e queria marcar uma consulta para o médico… não se é Barreiro… Sim, sim é esse mesmo! Quarta-feira à tarde? Às duas? Deixe-me, por favor, consultar a minha agenda. Pode ser. (escuta a voz do outro lado do telemóvel e abana a cabeça) Hum, hum… Combinado. Certo. Certo. Obrigado! Bem, já dei o primeiro passo! Outros se seguirão ou não! Bem vou tratar do jantar! (sai de cena)
Cena II
(Maria entra em casa. Regressa da consulta com exames realizados mas sem os resultados. )
- (aborrecida) Ufa! Que dia este! O dia de trabalho já é complicado mas se tivermos de acrescentar uma saída do trabalho numa empresa com um volume de trabalho enorme, uma pequena ausência, pode provocar o caos. Fui visitar umas obras que estão a meu cargo e ver como estavam a evoluir! E a agenda não estava cheia. Nem lá perto! Que confusão! Sobretudo ao telefone! Só em chamadas perdi imenso tempo! Não é habitual. Nem sequer eram urgentes. Julgo que há pessoas que gostam de viver penduradas no telefone ou no telemóvel! Bem, de qualquer maneira, já fui ao médico, já fiz os exames e agora tenho de esperar. O médico diz que, se não for nada de grave, os resultados se saberão rapidamente. Acho que estava a brincar comigo… ( riu-se) Ah, como é bom estar em casa depois de um dia de trabalho! Encontrar o sossego da minha casa, as minhas coisas… Que confusão a de hoje! E se juntar a isso as confusões que fiz… (ri-se) Não é habitual! E parecia empedernida! (animada) Tudo a ajudar!
(Deixa-se cair para cima da cadeira) Ainda me sinto fatigada. E a cabeça dói-me também. (arregaça as mangas e pára a olhar o braço, depois para o outro e depois para as pernas) Que raio vem a ser isto? Manchas vermelhas? Não tinha dado por elas! De onde raio veio isto? Que estranho! Já tinha sinais vermelhos herdados do meu pai, agora são as manchas? Ah, é verdade, e o sinal vermelho de nascença na perna esquerda que cresceu comigo? Boa, deve ser para completar o quadro. Vou telefonar ao médico. (Levanta-se e dirige-se à mala de onde retira o telemóvel) Será que ele reparou logo quando me examinou? Estou? O meu nome é Maria Fernandes e estive aí na clínica há três dias atrás e precisava de falar com o Doutor Guerreiro por causa de um problema de saúde. (escuta com atenção) Sim, sim, eu espero… (passam alguns instantes) Estou? Doutor Guerreiro? Sou Maria Fernandes a senhora que consultou há uns dias e que se queixava de cansaço… tenho más notícias… apareceram-me algumas manchas vermelhas na pele, as dores de cabeça intensificaram-se e hoje dói-me o estômago e não comi nada que me pudesse provocar este problema… Muito bem, doutor, vou aguardar pelos exames… (Desliga e atira com o telemóvel para dentro da mala)
(nervosa) E agora vou fazer um chá para ver se melhoro a minha disposição.
(sai de cena)
Cena III
(Maria entra na sala. Coloca-se junto da janela, sentada na cadeira. Maria agitando-se nervosamente; levanta-se, senta-se, olha através da janela.)
Maria- Esta espera que nunca mais acaba! Há uma semana que fiz todos os exames e ainda espero a resposta! Não sei o que mais me angustia se a tensão da espera se o desespero do diagnóstico final! Não sei o que fazer. Não sei o que pensar. Afogo-me em trabalho tentando esquecer o terrível momento que estou a passar, mas não consigo. Há sempre algum aspecto que me prende como o laço da corda que prende o animal fugitivo: o sorriso de uma pessoa bondosa, o riso de uma criança, o olhar apaixonado de dois amantes, a cumplicidade saudável entre colegas, o carinho maternal para com o filho pequeno… tudo quanto é bonito e bom me enche de uma inexplicável saudade. Sim, só o lado bem da vida me enche de emoção. Dos acontecimentos maus da vida, não tenho saudades nenhumas. E foram tantos! Não, destes não tenho saudades nenhumas. Nunca me passaria pela cabeça ter saudades de alguém que só me fez mal. Falo daqueles que só se aproximaram de mim, mostrando sentimentos que não nutriam, evidenciando atitudes certas que encobriam motivos errados! Seria irónico! Seria como ter saudade de uma epidemia de cólera ou de peste negra… Lá vem outra vez a doença à minha cabeça. Embora me tente distrair é sempre assim, tarde ou cedo o meu pensamento é desviado para este assunto. Não lhe consigo mesmo fugir! É como se a doença, antes de manifestar fisicamente a sua força, me tentasse derrubar pscicologicamente antes mesmo de se declarar. É como uma corrida onde um atleta mal-intencionado tentasse derrubar o colega arrasando-o psicologicamente antes da prova. Se é provável que me domine fisicamente, como posso não pensar nisso? Tento, esforço-me mesmo, para tal mas o melhor é aceitar tudo. Não combater a ideia, aceitá-la. É mais fácil. Entregar a Deus, como me diziam as irmãs do colégio religioso onde andei, entregar a nossa prova a Deus, e deixar nas Suas mãos a decisão, seja ela qual for. Mas é-me muito difícil. É-me difícil perceber que a vida que me pertence, pode estar a ser minada por uma secreta força chamada doença que, embora muitos tentem explicar cientificamente, me parece inexplicável. Bem, tenho de ter calma. Isto foi só um aviso. O médico só me preparou para o pior. Deu-me simpaticamente as duas perspectivas da questão – ou poderia ser nada de mal ou poderia ser algo bem pior. Teria de me preparar para o desse e viesse. Tentei seguir o seu conselho, para mais, não tendo ainda certezas. Mas nunca entendi esta minha maneira de ser. Custa-me mais a tensão do que a verdade, por mais terrível que ela seja. Sempre assim foi. Em pequena, detestava os dias seguintes aos exames, emocionalmente era terrível. Preferia conhecer a nota à tensão criada pela incerteza. Nunca gostei muito de surpresas. Não gosto ainda. Talvez porque elas foram quase sempre negativas. Sim, posso afirmar isso. As poucas novidades que me apanharam desprevenidas não foram boas: a súbita morte do meu avô, a inesperada morte da minha avó paterna… a maneira como em pequena era surpreendida por acusações quando tinha a certeza de estar inocente. Realmente, a vida não foi nada fácil para mim. Perdi tudo. Posso afirmar que tudo quanto construí foi derrubado por violentos abalos sísmicos da vida. Resto eu. O meu emprego onde realizo um trabalho que adoro. A minha única alegria, deslizar pelas ruas da cidade onde desenhos meus se transformaram como que por magia em prédios altos e elegantes. Não é a arquitectura que eu gostaria de criar é só a possível. Sempre defendi que tudo tem de estar em sintonia com o ambiente onde se integra. Que nada se constrói sem ter à volta espaços destinados às pessoas que habitam esses futuros nichos a que chamam andares. Acredito nos espaços livres. O homem pertence à natureza não a florestas de pedra. Mas ninguém me ouve. Já me prejudiquei por ter manifestado mais do que uma vez a minha opinião. Despedi-me. Mas, com o trabalho realizado, não me foi difícil encontrar outro mais aliciante ainda. O ambiente não é competitivo e todos trabalhamos para o mesmo fim com a mesma alegria. A minha vida privada não é tão gloriosa como a profissional. Talvez por isso nunca pense nela ou lhe dê muita importância. Tenho um trabalho que me preenche, não preciso de nada mais. Precisaria de uma boa notícia, isso sim. Uma boa notícia na minha vida privada é algo com que não conto há anos. Talvez seja agora. Pode ser que essa carta, por que tanto espero, traga notícias boas. É isso! Na vida nem tudo tem de ser maus nem tenho, contrariamente ao que me ensinou o meu pai, de estar preparada para o pior. Não tem de ser assim. Podemos pensar no melhor. Pelo menos, enquanto podemos! Mas depois a desilusão não será maior? Não creio. É igual. Ou pode ser até pior! Corremos o perigo de nos sentirmos traídos pela vida. Há que aceitar, não se pode fazer mais nada! Racionalmente está tudo tão certo. O pior, o pior está em lidar com as emoções. São tão fortes e algumas vezes mesmo incontroláveis. Tenho exemplos disso na minha vida. Recordo-me de uma moça que conheci faz já uns anos. Era uma rapariga engraçada, muito amiga de um rapaz que conheci ao mesmo tempo que ela. Foi num dia especial da minha vida. Durante uma festa íntima. Tudo correu bem até se aperceber que ele se fixara em mim, desde que entrei no seu campo de visão. A partir daqui, tudo se modificou. A sua atitude, em relação a mim, distanciou-se. Como se fosse a culpada do que acontecera! Se ao menos houvesse possibilidade de uma relação entre eu e o rapaz. Mas não! Nem mesmo assim ela pareceu acordar do seu sonho ciumento. Se ao menos desse uma oportunidade para fazer o balanço da situação… Como me disse uma amiga (a única) tinha ali mais uma inimiga para juntar ao exército. É tão estúpido! O pior é que a vida parece repetir-se. O mesmo já me acontecera há imensos anos atrás, era ainda muito jovem. Bem, aqui foi pior. Aqui existia um sentimento forte que foi posto à prova por uma rapariga apaixonada não correspondida. Sempre foi interessante a minha relação com o sexo oposto: ou me odiavam ou me amavam. Raramente ficavam indiferentes ou me ignoravam. Tenho algumas amizades masculinas, mas nada por aí além. Restam-me as da infância das quais perdi o rasto. Os meus amigos sempre me foram mais fiéis do que as amizades femininas. Ainda são. Sinto isso quando os nossos caminhos se cruzam casualmente. (pausa) Estou só. É uma realidade que aceitei já há muito. Não tenho ninguém. Também não preciso. São tão boas pessoas que vê-los uma vez por ano ou menos é uma alegria. Não é que não goste deles. Nada disso! Eles é que não gostam de mim. Que mal lhes fiz? Nenhum! Não gostam da minha mãe, logo não gostam de mim. Habituei-me à ideia. Convivo bem com ela. Mas não são todos más pessoas! O problema é que os venenosos alimentam más ideias sobre mim aos outros. Só não entende quem não quer. E há muitas pessoas na família que já entenderam isso, mas têm medo de se manifestar. Alimentam um doce carinho por mim, nada mais. Fazem-nos à cautela, de longe para que os outros não se apercebam. Alguns, pura e simplesmente divorciaram-se do resto da família. Se não podem conviver comigo também o não fazem com os outros que não se cansam de me perseguir com histórias escabrosas inventadas ou deturpadas. Estou bem como estou. Mais vale só do que mal acompanhada. No meu caso esse ditado é bem verdadeiro. Graças a Deus que não preciso de nada deles! Se precisasse, também nunca os procuraria. Assim, sou só eu e a doença ou a ausência dela! Sim, porque a hipotética doença pode ser algo bem inofensivo. A apreensão do médico é grande, a minha… não sei. Não vou dizer que não estou preocupada, mas sempre fui ensinada que esta vida era só uma passagem. O facto de não deixar descendência, talvez também ajude a compreender melhor esta ideia. À vida pouco ou nada me agarra. Já deixo obra realizada, da qual me orgulho. Não sei o que esperar mais da vida… Nada! Mas quem é que eu quero enganar? Se fosse assim tão fácil, porquê este nó na garganta? Porquê esta dor enraizada na incerteza? O que é melhor? Enfrentar a realidade ou viver a esperança? E aquela carta prometida que não chega. Se fosse grave, o médico teria telefonado, não? Ou as más notícias são sempre enviadas por carta? E se estivesse realmente doente? O que faria? Acho que não quero pensar nisso. Não por enquanto. Quero ser livre enquanto posso. (ouve-se o som metálico da abertura do correio na porta; a personagem sobressaltada levanta-se e apanha o envelope com relutância. Senta-se na cadeira. Fica por instantes a observar a carta como que hipnotizada.)
Não sei o que hei-de fazer! Estou ansiosa por conhecer o veredicto dos exames, mas tenho medo! (Tapa os olhos com as mãos, destapando-os seguidamente. Pega na carta) Engraçado! Nunca estive presa à vida! Sempre pensei que andaria por cá o tempo que Deus quisesse! Porquê este apego repentino? Porquê este medo que me destrói? E nem sequer conheço ainda o resultado! De que tenho medo afinal? A vida ensinou-me que o que quer que encontre do outro lado, não pode ser pior do que aquilo que já vivi! Aliás, pelas leituras realizadas, e a confiar nas linhas escritas, tudo parece bem melhor… Então de que tenho medo? De morrer, não é de certeza…(continua a agitar-se. Levanta a carta e, num gesto possante, rasga o envelope e retira a folha. Desdobra-a e lê apressadamente com os olhos. A folha cai-lhe no colo. Parece distraída) Oh, meu Deus! O pior aconteceu! (nervosamente) O pior dos diagnósticos revelou-se. A palavra maldita está escrita nesta folha imaculada como um forte borrão negro na minha triste vida! Não quero! Não pode ser! Maldita doença! E seis meses de vida! Seis meses de vida? (angustiada) Seis dias de vida! (balança-se)Tenho apenas quarenta e seis anos! E nunca pensei na verdadeiramente na morte! Para mim, não passava de um conceito filosófico-religioso que debatia entre simpatizantes. Meu Deus! Porquê agora? Porquê eu? (olhando para a folha) Seis mesess? Tão pouco! Tão inesperado! Tão aterrorizante! Tanto sentimento contraditório se cruza dentro de mim! Odeio a ideia! Como pode alguém ter apenas seis dias de vida? Como pode este terrível machado pesar sobre a minha pobre cabeça? O que aconteceu? O que fiz eu para merecer tal castigo? (levanta-se e avança até à boca de cena; olha para o público.) Não pode ser real! Tem de haver algum engano Só posso estar a viver um pesadelo (lívida) do qual vou acordar daqui a instantes e perceber com grande alívio que tudo não passou disso mesmo – um pesadelo. Mas não é, pois não? (ri-se amargamente, baloiçando-se para trás e para a frente agarrada ao seu corpo)Eu tenho os olhos bem abertos! Os mesmos que leram aquelas terríveis linhas! Os mesmos que estão agora a olhar para vós, ó paredes! Mas isto não pode ser real! Não pode ser real! Tem de haver algum engano! Nunca tive uma dor ou qualquer problema de saúde grave! Procurei seguir, na medida do possível, uma alimentação saudável… pratiquei exercício físico regularmente, nunca alimentei vício algum… Nunca fui dada a sentimentos mesquinhos ou de raiva. Como pode isto acontecer ao meu corpo? Não é que o tratasse como uma catedral, não é isso, mas tinha alguns cuidados! Dentro da minha negra vida que se resumiu a encontros com pessoas negras e nefastas, sempre encontrei uma saída o mais saudável possível, tanto física como espiritualmente! Foi a isto que se resumiu a minha paralisante vida social. A olhar a isto não incomoda nada morrer! Mas a esperança é ainda tão grande! A esperança de que a minha vida dê uma volta de cento e oitenta graus e possa ainda fazer a diferença! Quero ter a vida que sempre sonhei. Encontrar pessoas nas quais me possa fundir. Que pensem e sintam e vivam como eu! Estou farta de máscaras! De pessoas que se fazem passar por aquilo que não são! Quero encontrar alguém genuinamente honesto! Todos os dias tenho essa fé. Afinal, mudei de casa. Mudei de localidade! (Pausa.) Como pode o meu corpo lutar contra si próprio? Como pode o mesmo exército voltar-se contra si próprio dentro do campo de batalha e frente ao inimigo? Não tem lógica! Nada disto faz sentido! Pior ainda, o que vou fazer para conviver com esta realidade fria, nua e crua? O que posso fazer para combater esta peste que penetrou nos poros da minha pele e cercou a chama da minha vida? Não consigo conviver com a ideia de que tenho um problema e nada posso fazer… Estou prisioneira dentro do meu próprio corpo. Corpo este (aponta com os dois braços em forma de patas de caranguejo) que já não me obedece, não me pertence limitando-se a cumprir os negros desígnios misteriosos de um poder desconhecido que ameaça cortar o fio da minha vida com a sua afiada navalha a qualquer instante! Para quem me volto neste momento de angústia? Quem me pode valer? Toda a vida me ensinaram que há uma solução para cada problema! (ri-se) Eu própria era uma crente! Não há dúvida de que é uma forma optimista de educar para a realidade! Mas como é que ela se aplica aqui? Ensinam-nos tantas coisas na vida, mas quem é que nos prepara para momentos como este? A dignidade só não chega! Viver com dignidade estes últimos dias?! É tão brutalmente fria esta ideia! Não posso limitar-me a isto! A vida é muito mais! A vida não passa só pela aceitação! Há que viver o tempo que resta! Como? O que pode fazer em apenas seis meses de vida? Muito pouco ou quase nada! (pausa) O que foi feito e toda a esperança que, ainda há pouco, e apesar do medo, ainda me iluminava? (cai de joelhos e olha o público, angustiada) Mesmo sabendo que a vida é uma passagem, eu não quero morrer já! Não quero morrer assim! Quero viver pelo menos mais alguns anos nem que seja para realizar todos os sonhos que interiormente acalentei e guardei religiosamente no local mais seguro da minha memória. Nunca fiz planos! Talvez por saber que, na minha vida, eles eram inúteis! (ri-se) Sempre que planeava alguma aspecto da minha vida, ele saía sempre furado! Deixei de planear. Era como se houvesse um mafarrico atrás da minha orelha espiando os meus pensamentos e inutilizando-os imediatamente. Deixei de planear. Saltava da cama de manhã e fazia o que apenas deixara aflorar à memória o tempo suficiente para que nada nem ninguém descobrisse! Só assim conseguia concretizar alguma coisa. O que eu nunca pensei é que teria também de deixar de sonhar! (pausa) E agora, o que faço? (eleva as mãos em sinal de impotência) Nem um ano me dão! Nem seis meses! Nem mesmo um mês ou quinze dias! Apenas seis! (grita) Seis míseros meses! Engraçado, antes, seis meses pareciam-me durar uma eternidade! Agora, parecem-me uns fracos segundos! (tapa a cara com as mãos e balança-se agarrada si própria) Oh, não! Nunca pensei, na minha atribulada vida cheia de inimigos, vir a acabar assim! Com seis meses apenas, prestes a expirarem e a condenação aos tratamentos regulares e inúteis! (abre a mão em estrela acompanhada de outra onde eleva um dedo. Geme. Nova pausa) A vida decidiu por mim! Não tenho alternativa! E eu que nunca deixei que nada nem ninguém decidisse por mim! Nem mesmo os meus inimigos! Por falar de inimigos… Inimigos! Acabei de encontrar o último! Este que me devora gulosamente as entranhas até as deixar sem vida. Sempre soube que nenhum ser humano tem a vida nas mãos (olha para as mãos em forma de concha) Eu não sou excepção! Mas não consigo, nunca consegui viver sem liberdade! É na liberdade que me revejo! Não consigo viver com esta terrível sentença! Tenho de fazer qualquer coisa! (levanta-se tomada de uma esperança súbita) É isso! Não quero! Não posso! Não devo! Lembro-me das duas crianças que encontrei há muitos anos numa sala de hospital. Lembro-me das suas pequenas cabeças luzidias, despojadas dos seus compridos caracóis loiros e morenos, sujeitas ao espaço de um quarto onde jaziam os seus brinquedos favoritos, fiéis acompanhantes das horas dolorosas dos tratamentos e que ganhavam vida nos intervalos nas suas mãos inocentes. Lembro-me da sua resignação perante a trágica sorte que lhes coubera, mantendo-se aparentemente desligadas da sua sorte como se no mundo nada mais interessasse que os seus brinquedos. Recordo o sentimento de aturdimento, desespero e de culpa dos pais que nada compreendiam do que estava a suceder e haviam largado a profissão para acompanharem as filhas nos últimos momentos. Tenho ainda presente a imagem daquele extraordinário adolescente que mergulhava nos seus vídeo-jogos como se nada mais à sua volta interessasse. Lembro-me do rosto desesperado daquela mãe, chorando às escondidas, para regressar com o rosto calmo para junto do filho, tentando encobrir a sua dor aos perspicazes olhos do filho que alinhava tacitamente no jogo. Lembro-me da visita ao IPO onde fui um dia receber o resultado de um exame a um sinal que aumentara de volume. Aqueles rostos cinzentos, quase sem vida! Os olhos apagados! Esperando na prateleira a hora inevitável! O silêncio pesado daquela antecâmara de morte, só perturbado por murmúrios irreconhecíveis. Não consigo! Não posso! Não quero! Não devo! Se tenho apenas seis dias que eles vividos da melhor forma! Devo isso a essas crianças que sem querer, muito me ensinaram! Já sei o que vou fazer! Não sei se resultará… mas vale a pena tentar!(move-se agilmente na direcção da mês a e senta-se na cadeira. Pega na caneta e escreve febrilmente enquanto lê em voz alta) “Caro Professor Doutor Ernesto Simões, venho por este meio recusar os tratamentos que tem a amabilidade de recomendar, assumindo toda e qualquer consequência da minha séria decisão de recusar passar os meus últimos dias entre tratamentos e salas de hospitais. Vou gastar os restos dos meus dias realizando um sonho que me ficou por realizar. Com os melhores cumprimentos e agradecendo tudo quanto fez por mim, Maria Macedo.” O que posso fazer nestes seis meses? (grita) Eis aqui a minha resposta, ó doença maldita! Não vou passar os poucos dias que me sobram agarrada a ti, à tua existência dentro de mim! Não quero que a minha última recordação da vida esteja ligada a uma máquina numa despida sala de hospital. Não me vergarei à tua vontade! Vou fazer aquilo que sempre adiei indefinidamente à espera do momento certo que nunca chegou! Vou sair à rua! Vou misturar-me na multidão. Vou dedicar a minha vida aos outros! (levanta-se e dirige-se novamente à boca de cena; fala excitadamente) Não será esta a nossa última missão enquanto seres humanos? Dedicarmo-mos, ajudarmo-nos uns aos outros, enquanto por cá andamos neste difícil passo que é a vida? Nós damo-nos todos os dias num olhar, num gesto, numa atitude, na profissão… mas podemos fazer mais, muito mais! E há tanto para fazer! Nem sei por onde começar! Tenho de me concentrar! Não posso salvar o mundo em seis dias, mas posso melhorar os dias de alguém. Se tiver de morrer que seja entre boas causas. Que seja entre pessoas! Nunca sozinha, nunca numa cama de hospital! Só isso me vai realizar! Sempre me dei aos outros de muitas formas, falta-me uma causa mais directa! Falta-me um trabalho de campo onde as necessidades sejam maiores! Só assim poderei viver os meus últimos dias em paz e da forma que sempre desejei e nunca tive coragem de assumir! Vou-me vestir! (sai de cena)
Fim
18 de Março de 2010